domingo, julho 10, 2005

ART&rial VI

ART&rial I, ART&rial II, ART&rial III, ART&rial IV, ART&rial V


O quadro de El Greco, de que falei no ART&rial IV, é um resgate. No final do séc. XIX, Mary Casset, uma pintora impressionista americana estabelecida em Paris, tropeçou nele. À época as mulheres pintoras existiam atrás do cortina…e El Greco não era estimado como hoje. Casset, audaz e intuitiva, pretendeu passar o quadro das mãos de um negociante de arte para o Art Institute of Chicago, que acabou por o comprar por uma ninharia.
A Virgem de Corregio, a que me referi no ART&rial III, foi roubada no ano em que o AI a comprou.
A Salomé de Guido Reni já valeu muito mais do que hoje oferecem por ela. É uma das pinturas do AI que me fez cativa. O pintor de Bolonha, discípulo de Caracci, era altamente considerado antes de, no séc. XIX Rosqui, um proeminente crítico de arte, ter opinado desdenhosamente sobre ele.
Num dos episódios bíblicos mais violentos, Salomé, ao ver a cabeça de João Baptista na bandeja, demonstra tal sobranceria, tal frieza e impenetrabilidade. O Santo vai sereno e ninguém desarma a não ser o inoportuno do fundo, que se permite à surpresa.
Grande discussão gerou este quadro sobre se estaria ou não terminado, já que a parte debaixo não evidencia a precisão e o cuidado do resto da obra. Nem noutros quadros seus, como os vários que estão expostos no Louvre, exibem tal opção. Teria o pintor morrido antes de terminar a obra? Morreria com o pincel na mão? Não lhe terá valido o golpe, porque passou a valer incomensuravelmente menos? Guido foi sempre a cobiça dos seus pares e enriqueceu com o seu talento. Em pouco tempo deitou tudo no jogo, acabando por falecer na ruína…a sua Salomé persiste impávida.
Um quadro pode valer uma fortuna ou ter mudado a história da arte. Pode comover como o choro de uma criança ou atordoar-nos com a sua presença. Olhamos para um quadro e vemos a cor, as formas, a disposição, a luz. Identificamos o autor, situamo-lo no carril do tempo. Mas um quadro também tem a sua própria história. A que não consta das placas que o acompanham nos museus e galerias. Que não vive nos panfletos para turistas nem subsiste na conversa do café onde se vendem postais de impressionistas, cartas de jogar com os girassóis de van Gogh, chapéus-de-chuva com as nuvens de Magritte, posters para todos os gostos e T-shirts que, falhado a impressão da memória, servirão de recordação.
Quando olhamos para a tela, ali aniquilando a neutralidade da parede, podemos esquecer que apenas está suspensa num momento do seu trajecto. Foi encomendada ou fruto do puro prazer de pintar. O seu criador dependia dela para comer ou para se galantear. Foi vendida ou abandonada. Já valeu muito, já valeu pouco. Teve vários donos, foi roubada ou recuperada da agonia de uma cave, oferecida ou leiloada, doada ou emprestada.
Depois, a proveniência da obra tem outras coisas…a história da sua posse ajuda a determinar a sua autoria e legitimidade, as suas costas têm selos e carimbos de exposições e galerias- das várias casas que enfeitiçou. Um quadro pode valer porque pertenceu a alguém. Pode valer porque esteve exposto em certo museu. Pode valer por causa da moldura.
Quem era a rapariga eternizada num quadro de Van Eyck? Porque se debruçava aquele homem? E de quem eram aqueles braços que parecem capazes do mundo?
Conhecer a história de um quadro, é também gratificarmo-nos com a sua sobrevivência. Porque interessa conhecer biografias de admiráveis? Pelo mesmo motivo que interessa saber a história de um quadro. É isso mesmo, um quadro tem uma vida própria. É um ser.