quarta-feira, janeiro 25, 2006

Presidenciais post-mortem

"O Cavaco de salvação"

«Ele há muitas maneiras de se olhar para umas eleições presidenciais. A televisão portuguesa, por exemplo, passa um anúncio, que presumo da responsabilidade da Comissão Nacional de Eleições, para estimular as gentes ao voto. Trata-se de uma carinhosa relação entre um pai e um filho, dando a entender que o presidente é o pai de todos nós. Não é novo este conceito, pois bem me lembro que o meu livro da terceira classe apresentava a mesma ideia em relação ao moribundo almirante Américo Tomás. Salazar já tinha morrido. Ou talvez não.

Na verdade, nesses tempos passados, o verdadeiro pai da Pátria era Salazar. Foi nisso que grande parte do povo pensou quando o ditador se finou. "Foi-se o nosso Pai". Como o povo igualmente sabe, quando a pancada é muita o corpo amolece. E depois de 48 anos de fascismo, os portugueses tinham o corpo e a alma bem amassada. Um país de "sôr dôtor" e barretada, de espinhela curvada ao padre, ao médico, ao engenheiro, ao juiz, num hábito de reverência saloia e de aceitação do seu lugar na vida. Marcas ainda hoje presentes no nosso corpus social. Daí que quando Salazar expirou, apesar de já não se encontrar no poder há algum tempo, muita gente se sentiu órfã, independentemente de gostarem realmente do homem de Santa Comba Dão ou não.

O problema é que desde então, depois de um período caótico de fraternidade no pós 25 de Abril, o país ressente-se ciclicamente dessa orfandade, procurando imagens, figuras, personalidades que, de algum modo, reúnam características que se assemelhem às do provinciano ditador, nomeadamente as que o definiram como salvador da Pátria. Honestidade, probidade, magreza, origens humildes, amor pela economia, desprezo pela cultura, solidão, teimosia, certeza inabalável da sua superioridade (megalomania?),
desconfiança em relação a todos os outros. Estarei a descrever quem, Salazar ou Cavaco Silva?

Longe de mim pensar que o segundo se assemelha ao primeiro do ponto de vista político. Ou sequer que as suas ideias e práticas remetam para algo que tenha a ver com o fascismo ou ditadura mais ou menos provinciana. Nada disso. Cavaco é um democrata. Por muito que isso às vezes lhe custe. Refiro-me unicamente aos aspectos simbólicos de uma candidatura à Presidência da República que muitos dão como vitoriosa. Não tem e usa Cavaco muitos dos trejeitos de Salazar? Penso que isso salta à vista, é inegável.

Então a pergunta será: por que razão o povo português segue este tipo de dispositivo simbólico e não o rejeita como uma má experiência? Não sei. Atrevo-me a pensar que o longo apagão sobre o fascismo que a nossa educação pública efectuou nas últimas três décadas não terá construído uma memória desses tempos e desses tiques nas pessoas. Hoje, que parte da nossa juventude tem consciência clara do que era Portugal antes do 25 de Abril, de qual era a nossa taxa de analfabetismo, de pobreza, etc.? Quem sabe exactamente quem foi e como era Salazar? Uma diminuta percentagem como as estatísticas infelizmente revelam. Talvez seja essa ignorância ou falta de memória que pode levar um povo a apreciar os mesmos tiques e... sobretudo, não os achar ridículos, anacrónicos, não se rir deles.

Infelizmente, isto não tem piada nenhuma. Sei que não consigo encontrar uma resposta que realmente me satisfaça e convença.

Um dos tiques mais irritantes de Cavaco é o seu silêncio, o mistério que envolve as suas opiniões sobre uma série infindável de questões. Mas é também um dos mais eficazes, um dos que marca mais pontos, exactamente porque remete para o segredo e a solitária tomada de decisões, que podem ser as mais inesperadas. E isto fascina o povo, na sua tacanhice e desejo de desresponsabilização.

Tem, portanto, alguma razão a campanha televisiva paternalista: trata-se, no limite, de uma infantilização do cidadão, de uma mensagem clara de que ele precisa de um PR que seja uma figura paternal. Quem terá encomendado este sermão à Comissão Nacional de Eleições? Quem é que disse que o PR deve ter estas características paternais? Onde é que aprenderam que isso promove e exalta a República, na medida em que reforça o sentido de cidadania? Tudo isto me parece muito esquisito, muito esquisito mesmo. Quando o Estado nos dá este tipo de mensagem subliminar 30 anos depois da instauração da democracia, não posso deixar de estranhar. Onde é que ficou a imagem do cidadão responsável, adulto, consciente das suas obrigações cívicas e
políticas, digno, culto, interessado, a exercer o seu direito de voto?
Algures, num qualquer oceano de boas intenções. Isto para não entrar numa de teoria da conspiração e achar que nada disto é inocente.
Cair na real, dizem. Cair na economia, nas finanças, nas privatizações, nas bolsas. O pior é que nada disto tem qualquer realidade e é precisamente esse Portugal que nos empurra para trás.

Se a direita portuguesa só se consegue unir através de um símbolo salazarento como Cavaco, isso explica muito do nosso atraso em termos de desenvolvimento económico, dá muito a ver da mentalidade empoeirada dos grandes patrões de Portugal e do provincianismo egoísta dos nossos banqueiros.

É provável que Cavaco ganhe as eleições, até porque é apoiado por estas gentes do dinheiro. Um país cujos grandes projectos nacionais são o Euro 2004 e agora o Alemanha 2006 significa um povo à deriva e sem valores, capaz de se agarrar a qualquer cavaco de salvação. Nem que ele venha, lúgubre, salazarento, bafiento, a flutuar do passado. O que sabe o que quer e para onde vai, perdão... o que raramente duvida e nunca se engana. O cavaco de salvação.»

- Carlos Morais José in Jornal Hoje Macau
20 de Janeiro de 2006